Carnacristo
O senhor Esdras
estava fechando a porta do escritório do Departamento de Expressão
Musical Democrática, apressado para encontrar a irmã Zuleika. Nessa
época de carnaval, ele ficava muito sobrecarregado, porque eram
centenas de músicas que ele tinha que corrigir e colocar mensagens
positivas. Esdras era um funcionário muito reconhecido, durante mais
de quinze anos tinha criado muitos sucessos. Conheceu os grandes
nomes da MPB, como Fernanda Brum e Eyshila, e virou amigo de pastores
e políticos.
Agora, ele descia de
elevador do prédio na Rua da Lapa e começava a ouvir a algazarra do
Carnacristo. A localização da irmã estava piscando no Mapa, o
difícil era atravessar aquele mar de gente até os Arcos, onde ela
esperava. No quarteirão onde ele estava, ficava a ala das crianças,
com hologramas animados, biscoitos, fraldário, pula-pula. Foi a
primeira equipe dele no Ministério da Cultura que tinha criado essa
proposta, para o carnaval ficar mais aberto à família.
Mais à frente, ele
começou a ver os homens mais soltos. As mulheres ficavam com os
filhos na outra ala e eles estavam bebendo cerveja dentro da dose
liberada. Esdras esbarrou num guarda que estava passando com o
medfone pra medir o teor alcoólico. A música estava alta, mas aqui
e ali dava para ouvir as conversas, os amigos marcando para onde iam
sair. Tinha um cheiro forte de Erva Verde, uns meninos de quatorze
anos fumando, aproveitando que tinham chegado à maioridade.
O clima era
inconfundível, ele lembrava de outros carnavais. Esses jovens com
tatuagens bíblicas e camisas das igrejas só queriam encontrar as
meninas que estavam falando com eles pelo Mapa! Era cada verso
bíblico, cada promessa de amor eterno, e no fundo a mesma fornicação
de quando ele tinha vinte anos, antes das leis contra a cristofobia
no carnaval! Ele não condenava, homem é assim mesmo, se até Jacó
ficou sete mais sete anos pra conquistar Raquel, quem não ia mandar
um caô?
Envolvido nesses
pensamentos, e já com o cheiro do creme de cabelo irmã Zuleika
inebriando a memória, ele a avistou em frente à Escadaria da Bíblia.
Estava linda! uma morena de cabelos cacheados bem mais nova que ele,
tinham se conhecido na Igreja. Por uma estranha associação, cenas
passaram pela cabeça, os carnavais doidos da juventude, à base do
loló e da maconha, ele e os amigos juntando dinheiro pra VM.
Aproveitou e jogou o cheat de localização falsa no Mapa.
- A paz do Senhor,
Zuleika! - abriu o maior sorriso.
- Esdras! - se
abraçaram, não convinha se beijarem ali.
- Como vão as
coisas em casa?
- Ah, briguei de
novo com aquele ignorante! Depois eu te conto melhor. - Eles estavam
no meio da multidão, passaram pela escadaria – Aqui não é
perigoso, Esdras?
- Pode ficar
tranquila, eu sei o caminho. Eu pensei muito em você no meio daquela
trabalheira do escritório. - Zuleika sorriu com vergonha como da
primeira vez em que ele a cortejara na igreja.
Ela ainda lembrava
do sem-jeito dele, a convidando para o teatro. - Fica perto de mim.
Já estavam na rua
João Ferreira de Almeida, que Esdras ainda se confundia e chamava de
Joaquim Silva, mas que os católicos chamavam de rua de Nossa
Senhora, em protesto contra os nomes de santos retirados das ruas e
por causa do mercado clandestino de imagens lá, uma vez por mês.
Essa hora, era difícil alguém se arriscar a assaltar, mesmo ali, e
poder tomar um tiro na cara. Nem por isso ele deixou de fingir susto
e se agarrar na Zuleika, que correspondeu esfregando o rosto no dele.
Ele tinha um hotel
em mente, mas não conseguia se conter e estava sarrando, já de pau
duro, enquanto ela beijava e dava mordidinhas no queixo. Apertava com
mais raiva, como se estivesse se vingando da sua mulher, que agora
lhe era insuportável. No meio daquele agarramento, um grito – Para
aí, coroa!
O PM se aproximou,
com certeza ele ia pedir a identificação deles. Cada um no seu cada
um, mas a tentação de chantagear o casal adúltero era fácil
demais.
- Seu velho, vi aqui
no Mapa que vocês dois são casados. Não sei se vou poder liberar
você não. - Zuleika ficou desesperada, queria sumir e ficou quase
de costas.
- Meu jovem, você
sabe com quem está falando? - Ele começou a enviar hologramas de
homenagens da polícia quando ele corrigiu várias músicas que
passavam uma mensagem antimilitar. Marcha Soldado era tocada até em
escolas!
- Pera, senhor, esse
é o Major Antunes! Ele é do meu Batalhão. Vamos fazer um holo
juntos. O senhor não precisa esquentar a cabeça. - Zuleika se
afastou para não sair na foto, eles fizeram um holo sorrindo.
Depois, o PM deu boa noite a ele e a ela também, muito educadamente.
Zuleika estava
aterrorizada com a situação e com o livramento. O hotel, afinal,
não era nojento como ela tinha imaginado. Além de ter algum
prestígio, o Esdras tinha bom gosto. Nem foi tão ruim ir pra cama
com ele, não depois daquela erva – ela nunca tinha fumado antes.
Queria abrir os horizontes, por que não?
Depois eles
desceram, não eram oito horas ainda, ele disse que ia pagar o aero
para ela chegar antes das nove em casa. Tinha dito que ia para o
culto. Na descida da rua, os desviados estavam tomando ecstasy e
Nbome, gritando e dançando desorientados. Essas tinham continuado
proibidas, nem o lobby da empresa do Bispo Soares, que tinha
conseguido legalizar a Erva Verde, tinha conseguido.
Algumas pessoas ali
estavam fantasiadas, não chegava a ter mascarados, mas até odalisca
tinha. O Esdras tinha marcado com ela na terça-feira, e ela pensou
em levar uma fantasia escondida na bolsa e trocar no hotel pra sair
um pouco com ela na rua. Esperaram o aero na frente de um cartaz
rasgado que dizia “Quilombo Digital Santo André de Paula – hackeamento
urbano e ocultação no Mapa – economia natural eletrônica -” os
outros dizeres estavam ilegíveis.
Começou a tocar a
homenagem à cultura negra no carnaval, com sucessos do soul. Esdras
deixou Zuleika no aero sem maiores demonstrações de afeto, pra não
gerar suspeitas. Pegou outro aero e chegou em casa, a Raquel reclamou
da hora, ele deu meia dúzia de gritos e disse que estava no
trabalho. Trocou de roupa e foi assistir com ela o holo do desfile
das escolas de samba, a que estava passando era em homenagem a José
do Egito.
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