Varão bolado
O menor foi descendo
no f5, assim que o despertador do Mapa tocou. Tirou os arames de cima
da garagem e subiu em cima do aero envelopado, a missão do dia ia
ser pesada. Era muito pior pilotar aquilo de terno, como se fosse uma
pessoa qualquer, mas tudo pra disfarçar qual era o empreendimento
dele de fato.
Conforme o aero ia
subindo, a cidade ia se abrindo em 360 na sua frente. Linda e
desesperadora. A comunidade estava um formigueiro por causa da Marcha
pela Bíblia, vários poderosos iam aparecer. Ali também ia ser
fácil encontrar um fornecedor. Mas não era ali que ele ia procurar,
era risco demais pra correr tão perto de casa.
Olhou para a Volta
por Cima, flutuando no céu na direção da Barra, a plataforma
brilhante com os prédios luxuosos, cheios de quadras e piscinas em
volta, ali sim estava o comprador. Ele não ia muito longe, tinha
pensado nas ruelas da Abolição, aqueles becos de pobreza total na
parte mais rica da cidade, quase ofendendo os hologramas gigantes do
Templo de Salomão, mas não precisava ir até lá, no Curtição lá
do Estácio também tinha como encontrar fornecedores, e não ia
gastar a soda do aero, que estava os olhos da cara.
Quando o aero
desceu, ele colocou na modalidade explosiva, pra matar o ladrão que
encostasse. Pegou o taser, só por precaução, e foi atrás do
dinheiro. Não ia ser otário como Jorginho, que se matava no
aerotáxi. Viu toda a dificuldade que a família passou, ficar pra
sempre em contrato de um dia era a certeza de não sair daquela
situação.
Por isso que, quando
ele passava na rua e via o pessoal, alguns fumando pedra, e reparava
que as crianças olhavam das janelas com medo e curiosidade, lembrava
que o grande passo da vida dele tinha sido ir pra rua ainda pequeno.
Já levantou logo o
taser pra quem estivesse pedindo dinheiro, com o terno e o implante
fluorescente do lado do olho direito, aquilo ali fazia a maior
presença!
Jogou um programa no
Mapa, com que ele via todo o conteúdo do prédio em holograma, e o
alvo ficava piscando. Ser fornecedor não era mais proibido depois da
Lei da Livre Escolha, mas aquele ali era bem raro, e ele não ia
correr o risco de perder o pâncreas pra outro trafi, muito menos ser
assaltado por um bandido comum no caminho pra lá. Ainda mais que o
prédio era uma cabeça de porco, coisa do mundo mesmo.
Algum varão podia
cair ali por causa do empreendimento, então, mas ainda assim era
mais fácil que tentar mudar de vida concorrendo em reality show,
sonho dele e de todas as crianças. O global mesmo que ia receber a
encomenda morava até hoje na Volta por Cima, depois de batalhar
muito pra ganhar.
A entrada do
Curtição era uma zona, as menininhas exibindo pelo Mapa os
atestados de que não tinham nenhuma DST, muita gente andrando nas
drogas eletrônicas, o 3.2 a onda do verão, dois caras da Dove de
fuzil falando com a dona do estabelecimento, também devidamente
legalizado pela Lei da Livre Escolha.
Mais pra cima,
ficavam todos os outros serviços alternativos do bairro. Aquilo foi
considerado até, de certa forma, na época, uma resistência
cultural ao regime dos pastores. Enquanto o Davi subia no elevador
cheio de baratas transgênicas, um velho de bigode grosso assoviava
um samba enredo como se fosse o último carioca.
Davi chegou no
oitavo andar e foi andando no corredor, vendo as portas com imagens
de São Jorge e vasos de comigo-ninguém-pode. Instintivamente, foi
rezando um pai-nosso e pedindo unção.
O seu Sizenando
abriu a porta remotamente, pediu pra ele sentar no sofá e foi fazer
um café na impressora.
- O senhor é um
homem muito solidário, senhor Sizenando. Essa parte do seu pâncreas
vai servir pra muito mais do que pagar o seu cartão de crédito, ela
vai ajudar a salvar uma vida – era sempre a mesma ladainha que ele
já tinha até decorado.
- Eu sei, varão, eu
sempre rezo quando vou doar um órgão.
Os dois se
levantaram, o Davi impôs as mãos e começaram a orar, em algumas
partes falavam em línguas, em outras pediam prosperidade e saúde ao
comprador.
Depois, ele levantou
a camisa do velho, tentando não ser grosso, e fez um pequeno corte
na barriga com o medfone. Era o quarto ou quinto no corpo. A seringa
do medfone arrancou um pedacinho do pâncreas, o suficiente para ser
cultivado em laboratório. Quando o Davi falou que o comprador era da
Globo, o Sizenando ficou muito feliz e lembrou que tinha torcido pra
ele no reality.
A porta voou com uma
bala de Kim.
Pedaço pra tudo que
é lado.
Entrou uma mulher
com máscara de gás e um roupão azul telado (onde apareciam de vez
em quando versículos dos Salmos), e apontou o trabuco pra cara do
Davi. A bala de urânio empobrecido tinha atravessado a parede atrás
deles como se fosse papel, deixando aquela fumaça cancerosa no
rastro:
- Calma, aí, varão!
Tu ficou maluco? Tá endemoniado? Levanta esses braço e me passa
essa amostra aí, sem fazer nenhum movimento brusco, senão minha vai
ser a vingança, ladrão!
A casa tinha caído,
o Davi sabia que aquilo era coisa de cachorro grande, o doutor Moura
tinha passado um fornecedor raro demais. Quase chorando de raiva, ele
entregou o medfone na mão do velho.
- Você é um vaso
de desonra do caralho, Davi! Falar logo em português claro, um balde
de merda! Passei uma provação por causa de tu! - o Davi sabia que
era melhor não interromper – Os varão me mandaram uma mensagem
pelo Mapa, eu fui no endereço, graças a Deus que eu tava de terno,
era aqueles prédio de vidro com holograma na frente lá da Abolição.
Mas sendo de uma empresa de tecnologia, Ressurreição e Vida.
… E, um dos homens
de terno que foi se reunir com o doutor Moura foi o pastor Valderci,
um cara de destaque na Igreja Evangélica Brasileira, que explicou
com muita cortesia:
- Irmão, o senhor
está no erro, tudo aqui foi salvo e, se você tentar de novo esse
esquema, vamos te passar, em nome de Jesus!
O Davi foi pensando
em tudo isso quando estava na Faixa de Gaza, indo pegar a Brasil pra
passar um tempo fora do Estado. O doutor Moura de otário não tinha
nada, e fazia parte de tudo que era esquema desde a época da Frente
Evangélica. Ele simplesmente ia dar um ghosting por um tempo, mas
mantendo o empreendimento dele por debaixo dos panos. Ele, Davi, é
que não era maluco de lutar contra esse Golias.
Sinistra distopia de um Rio de Janeiro num futuro muito próximo...
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