Ponto

 


Sofonias tava no beco. Na encolha esfregou o bombril no implante pra embaçar a conexão, enquanto olhava pros dois lados e via os ome escaneando a rua em frente ao boteco. Lembrou de quanto tempo tinha perdido no mesmo boteco do seu Melquisedeque, usando todo tipo de drogas eletrônicas e vendo holograma pornô a noite inteira. Só se salvavam os dabkes que ele ouvia chapado.

Mas tudo isso era passado. Agora eu tô sendo capacitado, pensou empolgado, vou ser foda igual o Pedro Guerra e vou estourar esses ímpios! Olhava, disfarçando muito mal. Só quem já teve que fugir dos ome sabe como é essa sensação. Tremeu com um grito, “Ô menor, tira esse pano de chão!”. Finalmente o Miquéias tinha aparecido com aquela cara magra, o cabelo grande debaixo do keffyieh e a senha combinada, que era zoar a camisa nova escrota do Guangzhou, “Paz do Senhor, varão! Tudo na moral?”. “Bora ali nos Arcos, que eu vou te apresentar um amigo meu”.

Foram andando, o cu apertado de medo de serem pegos no laço, aquele bairro tava uma verdadeira provação. Mas ainda era de dia, então tava todo mundo empreendendo, cadeiras pra consertar implante, as banquinhas por todos os lados e vários aeros voando raso. O Sofonias sabia que, lá escondidos em alguns quartinhos, iam os fornecedores vender os rins e o pâncreas, porque tinham sido parados duas vezes no caminho pelos caras querendo comprar. 

— E aí, menor, dá pra confiar em ti? Tu trouxe a parada que eu pedi?

— Aqui, fiel. — Já ia levantando o mãozão com o token, mas levou um tapa de leve do Miquéias

— Pera, varão! — E ele passou a mão por um tempinho na frente da cara do Sofonias. A placa de platina da mão criou um campo azul, miniaurora boreal que relampejou um raio até o implante na têmpora. — Agora, sim, desabilitei, amado. Dá pra conversar.

— Demorou, eu não sabia. O que tu fala pros ome dessa tua mão aí?

— Ah, eu falo pra enfiar no cu deles. — Gargalhou. — Tô brincando. — O Sofonias não tava acostumado a ouvir palavrão. — Digo que tive que operar por causa de acidente, mas que lá no Quilombo o doutor André colocou esses hardware. A gente precisa, quando vai se desligar do Mapa. — O Sofonias tava com cara de otário, deslumbrado, bolado igual Elias vendo a carruagem. Eles foram pra um lugar dichavado. Era um lugar onde as pessoas iam mijar. 

— Então, Miquéias, foi esse token aqui que ele pediu pra te entregar.

O outro pegou o objeto quase tremendo, o Miquéias também sem jeito. Um laser na ponta do dedo mindinho leu os hologramas e ele ficou bem sério.

— Varão, o negócio é o seguinte. Tu já sabe com o que a gente tá mexendo. Já não é segredo pra você. Tu não furou o ponto e nem xisnovou o esquema. Então, eu vou te captar, mesmo sabendo que tu é um moleque de doze anos — disse. O outro ia falar que era treze, mas achou melhor ficar calado e ouvir. — Tu sabe que isso aqui é uma rede, que o Santo André criou pra derrubar a Frente Evangélica. Eles caíram, mas a gente não teve força e não conseguiu chegar ao poder popular.  Continuaram esses caras mais ricos que Nabucodonosor, morando nas ilhas voadoras. Você pensa muito sério, porque não tem como sair depois. Você vai ser um homem morto andando. É pra saber se tu quer entrar na rede e o teu chamado vai ser na distribuição. Teu implante vai ser um alvo, e tu vai ter que se esconder igual eu.

— Mas é claro que eu quero, sou varão de guerra!

— Calma, não vem afobado. Tu pensa. Fica rodando aí pelos Arcos. Quando tu meditar e chegar numa conclusão, pega um aero e desce no endereço que eu vou te passar. Não dá mais pra tu voltar pra comunidade. Lá é o aparelho que tu vai ficar por enquanto. — Repetiu o código de área até o Sofonias decorar. — Se tu esquecer, fudeu. — E morreu de rir.

O Sofonias tava todo besta, parecia que tinha ganhado o maior presente do mundo. Não sabia a pica que ia encarar.

*

Notas Autorais: Eu tô fora de distopias! Tô querendo explorar o universo do Cyberfunk e tentar ver quais são as rotas de fuga, por onde reverter a situação aparentemente sem saída. Isso tem a ver com o nosso mundo também.


Publicado originalmente na newsletter Faísca, Segunda Temporada, episódio 30


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